Liezi (Lie-Tsé ou Lie-Tsu) (aprox. séc. IV ou V a.C.) é considerado um dos três principais filósofos que desenvolveram os princípios básicos da filosofia taoísta. No seu livro “Vazio Perfeito”, ele conta estórias prodigiosas e poéticas que, de certo modo, dão continuidade à tradição taoísta dos outros dois mestres, Laozi (Lao-Tsé ou Lao-Tsu) e Zhuangzi (Zhuang Zhou ou Chuang-Tsu).
Muitos temas tratados por Laozi e Zhuangzi são também abordados por Liezi, com a diferença de que Liezi enfatiza mais o aspecto metafísico da realidade do Supremo Dao. Algumas estórias lembram a ironia de Zhuangzi no sentido de transgredirem a lógica comum. Por exemplo, na questão da linguagem, Liezi concebe que, no caminho da realização do Dao, é mais fundamental o silêncio do que a fala. Há a crítica da linguagem considerada como operação artificial e mental que nos afasta da Naturalidade. Geralmente as estórias chegam a ser precursoras de certas estórias “koan” do zen-budismo, porque justamente ultrapassam as leis da mente lógica e mundana.
Em Liezi encontramos experiências profundas de realização do Dao, onde a identidade do sujeito acaba se fundindo com o Todo, numa espécie de experiência xamânica e mística. Por isso, sua leitura é tão fundamental quanto os escritos de Laozi e Zhuangzi para aqueles que buscam cultivar a essência da filosofia taoísta chinesa.
……………………………………………………………………………………
“Vazio Perfeito” – Trechos da Parte 1 – Liezi
Tradução: Chiu Yi Chih
Liezi residia no Estado de Zheng e, durante quarenta anos, permanecia desconhecido. O
príncipe e os ministros oficiais viam-no como uma pessoa comum. Havia a miséria da fome no Estado de Zheng e ele migrou para o Estado de Wei. Seus discípulos disseram: “Como você partirá sem retorno previsto, gostaríamos de perguntar se o senhor tem algo para nos ensinar. O senhor não havia aprendido com seu mestre Hu Qiu?”
príncipe e os ministros oficiais viam-no como uma pessoa comum. Havia a miséria da fome no Estado de Zheng e ele migrou para o Estado de Wei. Seus discípulos disseram: “Como você partirá sem retorno previsto, gostaríamos de perguntar se o senhor tem algo para nos ensinar. O senhor não havia aprendido com seu mestre Hu Qiu?”
Liezi respondeu sorrindo: “O que Hu Qiu tem a dizer? Embora eu tenha escutado secretamente o diálogo dele com Po Hun Mao Ren, tentarei relatar o que ouvi. Foram assim suas palavras: ‘o Princípio da Geração é o Inegendrado e o Princípio da Mutação é o Imutável. O Inegendrado possui a força de gerar e o Imutável possui a força de transformar. O que é gerado jamais escapa da mutação. O que nasce sempre se transforma. Por isso, há sempre a lei da geração e mutação. Os fenômenos para os quais existem a geração e a transformação estão a todo instante sendo gerados e transformados, seguindo assim a alternância dos Sopros Yin e Yang e as quatro estações. O Inegendrado permanece unicamente idêntico. O Imutável avança e retorna, sendo que seus movimentos de ir e retornar são infindáveis. Unicamente idêntico, o Dao é inexaurível. Como diz o livro do Imperador Amarelo: O Espírito do Vale nunca morre. É a Fêmea Misteriosa. A porta da Fêmea Misteriosa é a raiz do Céu e da Terra. Incessante existência. Inesgotável eficácia. Portanto, aquilo que gera os seres jamais poderá ser gerado e aquilo que transforma os seres jamais poderá ser transformado. Eis o que são os Princípios de Auto-Geração e Auto-Mutação, possuindo por sua própria natureza as qualidades da forma, da cor, da inteligência, da força, da dispersão e do repouso. Por isso se diz que eles geram e transformam a forma, a cor, a inteligência, a força, a dispersão e o repouso, sendo que seria equivocado pensar de outro modo.’
……………………………………………………………………………………..
Liezi disse: “Os antigos sábios governavam o mundo a partir dos Sopros Yin e Yang. Se tudo que possui forma se origina do Informe, de onde surgiram o Céu e a Terra? Por isso se diz que havia o Supremo Princípio da Mutação, o Supremo Primórdio, a Suprema Origem, a Suprema Simplicidade. O Supremo Princípio da Mutação precede a geração do Sopro Primordial. A Suprema Origem precede a geração da Forma Material. A Suprema Simplicidade precede a geração da Natureza Interna. Antes da geração do Sopro Primordial, da Forma Material e da Natureza Interna, as coisas não estavam separadas, pois dizia-se que havia o Caos Primordial onde todos os seres estavam misturados e ainda não tinham sido separados um do outro. O Caos Primordial não é visto pela visão, ouvido pela audição e nem alcançado pelo tato, e por isso, diz-se que é a Mutação. Sem formas e indícios, a Mutação por meio das suas transformações gera o Princípio da Unidade que é a Suprema Polaridade. O Princípio da Unidade se transforma e gera o Sete. 1 O Sete novamente transforma e se desdobra até o Nove. O Nove é o desenvolvimento do Sopro Primordial, e então, perece e retorna ao Princípio da Unidade. Esse último é a Origem das transformações dos fenômenos materiais. O mais leve e puro se torna o Céu. O mais pesado e impuro se torna a Terra. O Sopro Vazio Harmonioso, [resultante da interação entre Yin e Yang], torna-se o Homem. Portanto, [a interação harmoniosa entre] o Céu e a Terra produz a Essência Vital, transformando e gerando todos os seres.
………………………………………………………………………………………
O Imperador Amarelo disse: “Quando uma forma se move, não gera uma forma, mas uma sombra. Quando um som se agita, não gera um som, mas um eco. O que não se move não
gera o Nada, mas a Existência. Tudo que possui forma chega a um fim. Porém, o Céu e a Terra chegam ao fim? É evidente que o Céu e a Terra chegam ao fim tanto como nós. Mas o fim é definitivo? Eu não sei. O Dao em sua natureza termina onde não há começo e penetra no que não possui a Existência. O que possui vida retorna àquilo que é sem vida. O que possui forma retorna àquilo que é Informe. Mas o que não possui vida não é, por natureza, ‘sem vida’. O que não possui forma não é, por natureza, ‘informe’. A existência humana, de acordo com o princípio natural, deve chegar ao fim. O que é perecível necessariamente findará. É como a existência humana que não pode evitar o seu fim. Se alguém deseja que a vida perdure eternamente, permanece na imensa ilusão. O Espírito é algo que o Céu nos concedeu. Os ossos são o que pertencem à terra. O que é leve e puro pertence ao Céu. O que é pesado e impuro pertence à Terra. Quando o Espírito e o corpo se separam, ambos retornam à sua Condição Originária. Eis o que se chama ‘Espírito’. A palavra ‘Espírito’ significa ‘Retorno à Condição Originária’.
gera o Nada, mas a Existência. Tudo que possui forma chega a um fim. Porém, o Céu e a Terra chegam ao fim? É evidente que o Céu e a Terra chegam ao fim tanto como nós. Mas o fim é definitivo? Eu não sei. O Dao em sua natureza termina onde não há começo e penetra no que não possui a Existência. O que possui vida retorna àquilo que é sem vida. O que possui forma retorna àquilo que é Informe. Mas o que não possui vida não é, por natureza, ‘sem vida’. O que não possui forma não é, por natureza, ‘informe’. A existência humana, de acordo com o princípio natural, deve chegar ao fim. O que é perecível necessariamente findará. É como a existência humana que não pode evitar o seu fim. Se alguém deseja que a vida perdure eternamente, permanece na imensa ilusão. O Espírito é algo que o Céu nos concedeu. Os ossos são o que pertencem à terra. O que é leve e puro pertence ao Céu. O que é pesado e impuro pertence à Terra. Quando o Espírito e o corpo se separam, ambos retornam à sua Condição Originária. Eis o que se chama ‘Espírito’. A palavra ‘Espírito’ significa ‘Retorno à Condição Originária’.
O Imperador Amarelo disse: ‘O Espírito retorna à sua origem e o corpo retorna à sua raiz. Portanto, como se poderia afirmar ainda a existência de um ‘Eu’?
………………………………………………………………………………………..
Havia um homem no Estado de Qi que se preocupava com a destruição do Céu e da Terra, pois, estando seu corpo morto, não haveria um terreno aonde pudesse ser confiado. Sofria de insônia e não comia. Por outro lado, havia um outro homem que discordava dele e, então,
aproximou-se e disse-lhe: “O Céu não é senão a concentração do Sopro Vital. Não há lugar em que não exista o Sopro Vital. Se o ser humano, caminhando o dia inteiro sob o Céu, respira e se movimenta, por que motivo teria de se preocupar com a sua destruição?”
aproximou-se e disse-lhe: “O Céu não é senão a concentração do Sopro Vital. Não há lugar em que não exista o Sopro Vital. Se o ser humano, caminhando o dia inteiro sob o Céu, respira e se movimenta, por que motivo teria de se preocupar com a sua destruição?”
Aquele homem perguntou: “Porém, sendo a concentração do Sopro Vital, se acaso o Céu viesse a se deteriorar, do mesmo modo o sol, a lua e as estrelas também não sofreriam a deterioração?” O homem esclarecido disse: “O sol, a lua e as estrelas possuem a luz do Sopro Vital concentrado. Mesmo se entrarem em extinção, não há nada que possa prejudicá-los.”
Aquele homem ainda disse: “E a Terra se extinguirá?” O homem esclarecido respondeu: “A Terra não é senão a concentração do solo, pois, em toda parte, ela se difunde e não há local em que não exista a terra. Como o homem vagueia e caminha o dia todo, pisando por toda a terra, por que motivo teria de se preocupar com a sua destruição?”
De repente, aquele homem ficou bastante feliz e o homem esclarecido também. Zhang Lu Zi disse com um sorriso: “O arco-íris, o nevoeiro, o vento e a chuva, as quatro estações são o Sopro Vital concentrado do Céu. As montanhas, os rios e os mares, os metais e as pedras, o fogo e a madeira são a forma concentrada da Terra. Conhecendo a razão da existência do Sopro Vital concentrado e da terra acumulada, como se poderá afirmar que não sofrerão a destruição? O Céu e a Terra são uma minúscula matéria no espaço vazio. São também a imensa matéria que dificilmente perecerá e se esgotará. E, na verdade, são inconcebíveis e incompreensíveis. Preocupar-se com a sua destruição é absurdo, porém, afirmar que jamais se extinguirão também não é correto. O Céu e a Terra não escapam da destruição que fatalmente poderá acontecer. Quando suceder esse evento, por que não estaremos preocupados?”
Liezi ouviu e disse sorrindo: “É um absurdo tanto afirmar que o Céu e a Terra serão destruídos como também afirmar que jamais serão destruídos. Se isso acontecerá ou não, é algo que não saberemos. Contudo, trata-se da mesma situação caso venha a suceder ou não. Por isso, o homem vivo não conhece a morte e o homem morto não conhece a vida; aquele que nasce não conhece o processo de partida e aquele que parte não conhece o processo de chegada. Por que motivo eu teria de me preocupar se sucederá ou não a destruição?”
……………………………………………………………………………………
* Chiu Yi Chih (邱奕智) é professor de filosofia chinesa clássica no Centro Cultural de Taipei.Nasceu em Taipei (Taiwan). É professor de mandarim, poeta, tradutor, filósofo criador da“Metacorporeidade” (气质变化 – qizhibianhua), mestre em Filosofia Antiga (USP) e graduadoem Letras Clássicas (USP). Publicou os livros “Naufrágios” (Multifoco-2011),“Metacorporeidade” (Córrego-2016) e “Dao De Jing” (Mantra-2017). Deu palestras e cursos em instituições como Escola Brasileira de Medicina Chinesa (EBRAMEC), UNIFESP, dentre outros. Atualmente está dando o curso “Caminho Taoísta” no Centro Cultural de Taipei e terminando a tradução do “Vazio Perfeito” do pensador clássico taoísta Liezi (séc V a.C.).Pesquisa e estuda obras taoístas chinesas como “Huainanzi” (Mestres de Huainan), “Wunengzi” (Mestre da Potência do Vazio), “Iluminação Real” de Zhang Bo Duan, clássico da Alquimia Interna. Visite seu site: www.mandarimtaoismo.com