| Por Geraldo Alves Teixeira Júnior*
Gratidão. Em um live que fiz essa semana falei rapidamente sobre isso. E gostaria de ter dito mais! Estou há um mês com o projeto Saúde nas Redes, ensinando Chi Kung gratuitamente nas redes sociais, e acho que esse é um bom momento de acrescentar o que faltou dessa conversa sobre gratidão.
Nesses dias muitos estão fazendo atividades à distância: o trabalho, as atividades físicas, e até atividades culturais e de diversão. Essa é uma dificuldade, mas também uma oportunidade que só temos agora. Se uma situação de isolamento como a atual tivesse ocorrido há algumas décadas, certamente estaríamos de fato isolados, não apenas fisicamente, mas também nas nossas relações. Os aparelhos de comunicação eram pouco eficazes, tinham menos recursos, e eram bem mais caros. Há pouco mais de 20 anos, para conversar com alguém pela internet, usávamos apenas “programas de bate-papo” (nem chamavam “aplicativos de chat” na época!), com conexões geralmente lentas e instáveis, e ainda tínhamos que economizar no tempo, pois a conexão discada era cobrada por minuto, como ligações telefônicas.
Se há 10 anos alguém que tivesse a grande ideia de fazer Lives como as de hoje, teria que deixar o plano no papel, pois sem que a internet tivesse uma boa velocidade, sem que as telas dos “smartphones” tivessem boas resoluções, e sem que os preços dos aparelhos se tornassem mais acessíveis, o plano com certeza não funcionaria bem.
Para que algo ocorra é preciso que as condições existam, é necessário que haja um contexto social-cultural-tecnológico que dê suporte à materialização de uma ideia ou à evolução de um processo. Tomando o exemplo atual, isso significa: nada de pandemia sem grande circulação de pessoas em longas distâncias; nada de Lives sem celular, sem internet, sem aplicativos, sem cultura digital.
E daqui eu volto ao Tai Chi, pois era esse o ponto que comentei na minha transmissão. Hoje muitas das pessoas que querem praticar Tai Chi ou Chi Kung não têm instrutores em suas cidades. Há cerca de 30 anos, aqueles com essa intenção encontrariam muito poucas oportunidades não apenas em suas cidades, mas no Brasil como um todo. Há 80 ou 100 anos a maior parte das pessoas, de qualquer lugar do mundo, precisaria ir à China para aprender essas artes. E se esse aluno muito bem disposto estivesse procurando o Tai Chi há 250 anos, ele poderia fazer todo o esforço de ir até a China em meios de transporte precários e viagens perigosas, mas, chegando lá, iria descobrir que dificilmente aprenderia a nossa prática, pois o Tai Chi começou e se manteve por muito tempo como arte secreta. Transmitida apenas dentro do clã ou da família, e ensinada com profundidade apenas para os mais confiáveis e leais, a difusão global certamente não era sua ideia inicial.
A disseminação não autorizada da arte do Tai Chi Chuan poderia sim ser motivo de morte. Foi esse o desafio que Yang Luchan enfrentou ao se juntar à família Chen para aprender o Tai Chi. E se hoje pessoas totalmente desconhecidas podem praticar o Tai Chi à distância, no conforto de sua casa, sem correr nenhum perigo e sem ter que demonstrar previamente nenhum esforço excepcional, é porque os descendentes de Yang Lu Chan se empenharam em um projeto consciente para difundir o Tai Chi.
O mestre Yang ChengFu, sobretudo, viu o enorme potencial que o Tai Chi possui em todos os campos, não apenas nas artes marciais, não apenas na saúde física, mas na saúde espiritual dos indivíduos e na saúde espiritual dos povos como entidades coletivas. Em sua visão, com o Tai Chi seria possível levantar novamente o povo chinês, materialmente e moralmente devastado pela guerra.
Nesse caminho, foi ainda preciso o projeto não mais nacional, mas global dos mestres Yang Zhenduo e Yang Jun, com os quais muitos temos ou tivemos a alegria nos relacionarmos diretamente. Um projeto realmente humanitário, pois entende que nossa arte, levada ao maior número de pessoas pode ajudar a combater muitos dos nossos males civilizacionais recentes: o estresse, a depressão, a ansiedade, a agressividade, a intolerância, o sedentarismo, a obesidade, a falta de honestidade nas relações, a arrogância, e tudo aquilo que cada um de nós conhece nos outros e, às vezes sem querer admitir, em nós mesmos! Por todo esse esforço passado de geração em geração, a saudação aos mestres que fazemos ao iniciar e finalizar as aulas ou mesmo treinos individuais deveria sempre estar plena de reconhecimento e de profunda gratidão.
Por todo esse esforço passado de geração em geração, a saudação aos mestres que fazemos ao iniciar e finalizar as aulas ou mesmo treinos individuais deveria sempre estar plena de reconhecimento e de profunda gratidão.
Essas são apenas algumas condições para que tantas pessoas tenham podido acompanhar minha aulas online. Era necessário haver ainda aqueles que ensinaram os meus professores, eram necessários os professores que eu tive, e também que eu mesmo me tornasse professor. E, por fim, a condição se completou com um fator determinante: a pandemia de covid-19. Sem que tivéssemos reconhecido a necessidade de ficar em casa, sem que tivéssemos percebido que esses exercícios ajudariam as pessoas a atravessar esse período com saúde e tranquilidade, sem que eu fosse obrigado a interromper as aulas presenciais, o meu projeto de Lives de Chi Kung não teria acontecido. Sem tais condições, pessoas que eu sequer conheço não teriam me escrito para dizer que já estão se beneficiando com a prática, e eu não poderia, estando em um só lugar, praticar Chi Kung e Tai Chi com pessoas de Goiás, da Bahia, do Rio Grande do Sul, de São Paulo, de Rondônia, de Minas Gerais, de Portugal, da França, dos Estados Unidos, da Alemanha e de outros lugares que nem fiquei sabendo.
Nada disso significa otimismo ou pessimismo. Entendo as dificuldades do contexto que atravessamos, sei que a virtualização das relações por meio da internet pode ter efeitos negativos sobre a saúde e a sociedade. Além disso, também tive dificuldades nesse projeto Saúde nas Redes, porque jamais havia feito algo do tipo, porque não tenho nem os meios técnicos nem os melhores equipamentos para as transmissões, porque me preocupa que pessoas estejam praticando sem que eu possa vê-las para corrigir os movimentos e ajudar na execução.
Mas entendo que as coisas mudam e que esse contexto também irá mudar, em seu próprio ritmo, e claro, dependendo de nossos esforços individuais e coletivos, e vejo que todos esses problemas e dificuldades fazem parte das condições para que esse mês de práticas à distância tenha ocorrido.
Portanto, não se trata de julgamento. Trata-se, ao meu modo de ver, de gratidão. Muitas vezes entendemos a gratidão como uma espécie de otimismo que se volta para o passado, mas a meu ver são coisas distintas.
A filosofia me ensinou a classificar o igual e o diferente, e o Tai Chi me ensinou a praticar a observação, a buscar entender o todo sem perder a consciência das partes.
A filosofia me ensinou a classificar o igual e o diferente, e o Tai Chi me ensinou a praticar a observação, a buscar entender o todo sem perder a consciência das partes. Talvez futuramente eu possa escrever sobre mais sobre essa diferença. Mas no momento, isso é pra dizer que, do modo como entendo, gratidão não é otimismo porque não finaliza com um julgamento, mas com uma observação, uma apreciação consciente e um reconhecimento daquilo que, com clareza, eu posso julgar como positivo. No sentimento de gratidão não julgo, mas observo uma classificação já feita sobre positivo e negativo. E esse sentimento se completa quando entendo que naquele momento as coisas e condições que levaram ao que em momento anterior chamei de bem ou de mal estão entrelaçadas e são inseparáveis.
A gratidão nos permite ver a imagem completa a partir de uma observação mais ampla do que a que exercemos ao avaliar, classificar e julgar. Ou seja, quando sou capaz de observar aquela multidão de acontecimentos como um único desenrolar do tempo, e ao invés de julgar cada uma das partes, dizer apenas “foi assim, e é assim”, e mesmo sem perder a consciência do “que foi ruim”, permanecer com a sensação daquilo que foi “bom”. Talvez por isso o sentimento de gratidão nos permita sentir satisfação e plenitude.
No período de isolamento vejo muitos reclamando com raiva ou com tristeza, ansiosos por voltarem a fazer as coisas como sempre fizeram. Claro que eu também preferiria uma outra situação, mas felizmente, esse sentimento de gratidão tem me acompanhado. Pessoalmente acho que esse não seria o meu sentimento dominante sem tudo que o Tai Chi me ensinou sobre observação, adaptação e tranquilidade. Então, espero que o Tai Chi beneficie também a todos que praticam e praticaram comigo, ajudando-os a cultivar a gratidão. Porque os efeitos desse sentimento são extremamente positivos para o que se vive agora e também para nos ensinar a viver todas as venturas e desventuras que enfrentamos e continuaremos enfrentando como parte do movimento interminável que chamamos de Vida.
Minha gratidão por poder compartilhar as aulas, por essas aulas terem me levado a esse texto, por esse texto ter lhes alcançado, e por poder vislumbrar que todo esse caminho pode ser apenas mais um elemento a formar novas condições para que futuramente possamos experimentar e apreciar ainda mais dessa mesma gratidão!
*Geraldo Alves Teixeira Júnior é instrutor de Tai Chi Chuan da Família Yang em Goiânia
Conta no Instagram: @taichichuangoiania