Em pelo século 21, uma das tradições mais antigas do budismo tibetano segue seu curso nas montanhas do Himalaia. Enquanto a gente se embola com redes sociais, notícias instantâneas e máquinas surpreendentes, a busca por reencarnações de lamas dá sentido à vida dos monges daquelas partes do mundo. Outro dia, justamente graças a essa conexão tecnológica global — a incongruência me fascina ainda mais — soube que um novo menino tinha sido reconhecido como a reencarnação de um grande sábio. Me embrenhei na internet catando informações sobre essa procura improvável. É a história que conto agora para vocês.
No “Pequeno Buda”, Bernardo Bertolucci mostrou a história de Jesse, menino americano de 10 anos, de Seattle. Monges batem à sua porta informando que ele seria um forte candidato a lama reencarnado. E, depois da surpresa e dúvidas da família, lá se vão todos ao Butão (e deixo aqui em suspenso o fim da história, para quem não assistiu ao filme). Apesar de ficção, a história me fez viajar longe. E foi dela que me lembrei quando soube que, em 17 de março deste ano (2017), Kyabje Tenga Rinpoche Yangsi* foi reconhecido oficialmente e recebido em cerimônia no Monastério de Tergar, em Bodhgaya, na Índia. O menino tem pouco mais de dois anos.
Kyabje Tenba Rinpoche, fundador do Monastério de Benchen, em Katmandu, e grande conhecedor das escrituras, morreu em 30 de março de 2012. Desde então, seus discípulos aguardavam um sinal de sua reencarnação. Onde estaria? Sua Santidade Karmapa* fez então um anúncio auspicioso: em uma visão, soube onde o menino poderia estar. Deu a primeira letra do nome dos pais e uma clara descrição da região onde eles viviam.
No mesmo dia, com rapidez, criou-se uma equipe de buscas para colocar o pé na estrada e descobrir o paradeiro da reencarnação. Sua Santidade Karmapa fez até um desenho do lugar, tão precisa era sua visão. Tinha um rio, o vilarejo era composto de 30 a 40 casas — exatas 40, comprovou-se depois.
Tudo indicava ser a região de Nubri, concluíram os monges. Um vale montanhoso no nordeste do Nepal, na fronteira com o Tibet, a 6 dias de caminhada. Visto que não havia tempo a perder, e que afinal de contas estamos no século 21, os monges pegaram um helicóptero até Nubri.
Foram de casa em casa, procurando a criança, que teria nascido no Ano do Cavalo — outra predição de Sua Santidade Karmapa. Trabalho infrutífero. Pegaram suas mochilas e voltaram para o monastério.
Mas Sua Santidade não se deixou abater. Disse que a equipe voltasse ao mesmo lugar, pois talvez a mãe da criança tivesse se mudado para uma outra aldeia.
De novo, mochila nas costas, os monges partiram para Nubri. Desta vez, organizaram um encontro com todos os moradores da região. Todos acorreram e foram muito solícitos. Mas nada de menino.
Cansados, os monges pararam numa pequena venda para tomar um chá. E então a roda das causalidades se colocou em movimento. A vendedora puxou assunto e, na conversa, revelou que tinha uma irmã que havia se mudado. Morava agora a 3 ou 4 horas de viagem. Ela tinha, sim, uma criança que havia nascido no Ano do Cavalo. O nome dos pais — adivinhem? — começava com as letras indicadas por Sua Santidade. A mãe do menino mais tarde contou que, enquanto estava grávida, tivera um sonho. Um velho lama veio até sua porta e lhe disse: seu filho será um tulku.*
Os monges acorreram à casa. O menino, então com 1 ano e meio, os recebeu à porta dizendo em tibetano: “tashi delekla” (expressão culta para “bem-vindos”). Ocorre que ele, quase um bebê ainda, mal começara a balbuciar o dialeto local, que dirá tibetano culto… Ele continuou para a mãe, ainda em tibetano: “dê-lhes um pouco de chá”.
Daí em diante o menino, chamado Nyima Döndrup, foi submetido a uma série de testes para comprovar que ali estava o lama sábio, nascido em 1932. Os tulkus normalmente reconhecem objetos pertencentes a seus predecessores. Atentem para o minuto 25 do filminho que postei aqui. O menino tem nas mãos um mala, ou colar de orações. Esse mala pertenceu a Kyajbe Tenba Rinpoche. Foi um dos primeiros objetos que o menino reconheceu e se apegou.
E assim, em março último, o período de buscas finalmente se encerrou, muitos meses depois de ter começado. À direita de Sua Santidade Karmapa sentou-se o Yangsi , num trono coberto de panos dourados e vermelhos. Por horas agüentou circunspecto o vai-e-vem de discípulos e admiradores, colocou dezenas de hadas ou khatas*, acompanhou a cerimônia sem demostrar cansaço. “Sua presença radiante encheu o coração de todos e continuará a enchê-los ainda por muitos anos”, descreveu um dos monges presentes à cerimônia. “Que este relato contribua para uma vida longa e atividade florescente desta reencarnação divina”.
Assim seja. Namastê. Gasshô.
Notas
Karmapa – chefe de uma das linhagens do budismo,a Karma Kagyu)
Tulku – Em tibetano, tulku significa “corpo em transformação”, ou “nirmanakaya.” No budismo tibetano, um tulku é alguém que foi identificado como emanação de um grande mestre falecido, que volta sempre à Terra para benefício de todos os seres. O sistema de tulkus não existe em outros ramos do budismo. O Dalai Lama e o Karmapa são tulkus, por exemplo.
Yangsi – reencarnação de um mestre
Hada ou Khata – cachecol cerimonial tibetano. Apresentar o hada é um gesto para mostrar pureza, honestidade e respeito. O discípulo apresenta o hada e o lama o coloca no pescoço do discípulo.